quinta-feira, abril 29, 2010

Espíritos das Luzes (II)

Ainda em relação ao livro Espíritos das Luzes, de Octávio dos Santos, que recentemente aqui resenhei, torna-se relevante uma referência ao excerto das 75 páginas iniciais do livro, que pode ser consultado através do site flash da Leya. Uma oportunidade de ficar a conhecer melhor a obra analisada.

quarta-feira, abril 28, 2010

Ricardo Pinto na Feira do Livro de Lisboa


Espíritos das Luzes - Resenha


Esta resenha revela-se um caso bicudo. Primeiro, pela polémica em que se insere, mesmo antes da sua elaboração, e depois, pelo carácter inusitado da obra, que falha como exemplar de literatura fantástica mas que deixa uma grande promessa na sua esteira.

Espíritos das Luzes, de Octávio dos Santos, é sem dúvida uma obra de grande fôlego. A sua intenção e o trabalho em que assenta são disso prova. O número de livros consultados de e sobre o século XVIII português, a escolha de trechos originais a utilizar como falas das personagens, a concepção místico-científica deste universo onde Portugal é um planeta e não um país, constituem uma tarefa hercúlea capaz de assustar a quase totalidade de nós.

No entanto, o balanço final, mesmo numa obra que revela tamanha ambição, depende da forma como todos estes elementos, - Passado, Presente e Futuro, Realidade e Imaginação -, se conjugam. Socorrendo-me de uma metáfora culinária, um conjunto de bons ingredientes não assegura por si só um prato bem confeccionado.

A história narra a visita do escritor William Beckford, habitante do planeta Inglaterra, às obras de reconstrução de Lisboa, capital do planeta Portugal, três dias depois do devastador terramoto de 1755, acompanhando-o o poeta Bocage. Durante um dia, Beckford percorrerá vários dos edifícios mais emblemáticos da época, cruzar-se-á com muitas das personagens históricas da altura, e ver-se-á envolvido na guerra entre Iluminismo e Obscurantismo que grassa na capital. Para além do cenário, também a linha temporal é condensada para permitir que vários factos e personagens tenham a possibilidade de interagir nesse curto período.

Existem fragilidades que perpassam a história, e fragilidades que, infelizmente, se apresentam logo ao início. Tendo indicado já algumas das qualidades que vejo, permitam-me focar por alguns momentos nos pormenores que me influenciaram negativamente a leitura, para, antes do fim da resenha, voltar ao que absorvi de mais positivo.

Assumindo-se o livro como ficção científica, seria de esperar que a componente especulativa estivesse bem suportada. No entanto, a tecnologia parece ter sido dispersa aleatoriamente, de gadgets eléctricos, electrónicos ou magnéticos, a pistolas e barras de detenção laser, de hologramas (visuais, olfactivos e até gustativos) a gravadores e transmissores psíquicos, de levitadores a esferas locomotoras, tudo parece ser permitido, como fantasia, mas sem grande coerência para além do gosto pessoal.
Da mesma forma, a dimensão da cidade que nos é apresentada choca com a descrição do que se passa. Por exemplo, o Terreiro do Paço é apresentado como tendo 49 km2 (por comparação, o verdadeiro tem 0.036 km2 – todo o município de Lisboa tem 80 km2) e o Arco da Rua Augusta 500 m de altura (por comparação, a mesma altura da Serra da Arrábida, tão bem conhecida do personagem Bocage), mas a movimentação de Beckford e Bocage, o que observam, o decorrer da procissão, tudo acontece à escala da Praça que vemos hoje; existe uma clara discrepância entre o cenário grandioso pretendido e a interacção dos personagens com esse mesmo cenário. Mesmo a restante cidade, apesar da referência a milhares de veículos voadores a transitar em diferentes camadas, é de uma extrema simplificação, numa propalada metrópole de 55 milhões de habitantes!

A colagem ao género da História Alternativa também resulta bastante confusa. A escolha de colocar na capa “MMIX” (capa que de resto está brilhante; de Alex Gozblau, sob conceito de Octávio dos Santos) torna-se (e acho que consigo dizer isto sem provocar um spoiler…), depois de terminar de ler o livro, completamente incompreensível. A escolha das personagens históricas já precludia que se tratasse de um 2009 alternativo, o que é vincado de forma mais enfática pelo final da história; esse sim assumidamente de ficção científica, arrumando de vez com a hipótese de uma simples História Alternativa.

Este Espíritos das Luzes tem o condão de tentar construir uma fantasia tecnológica, colocando na boca dos personagens o que os seus congéneres “reais” realmente pensaram e escreveram. Nas suas discussões de política, ciência e religião, constatamos que os defeitos e virtudes de Portugal, como nação, parecem ser os que eram há 250 anos atrás, com as conclusões que possamos daí retirar. Efectivamente, algumas das melhores partes deste romance são precisamente esses diálogos, nomeadamente na Real Academia das Ciências, no Palácio Foz e no Templo. No entanto, essas “falas” deveriam estar subordinadas ao texto original do Octávio dos Santos, e não o inverso. Ao construir o texto à volta desses segmentos, tentando algumas vezes argumentar discrepâncias entre narrativa e diálogos, o autor criou adicionais motivos de choque, que contribuem para dificultar a imersão do leitor na história. Exemplos como O Dilema de Shakespeare, de Harry Turtledove, mostram que textos originais e o tom da época podem ser entretecidos com sucesso num romance actual, desde que subordinados a uma narrativa moderna.
Tudo isso é mais lamentável quando a escrita de Octávio dos Santos se mostra a tempos (principalmente quando não se preocupa estritamente em construir pequenas pontes entre trechos de citações de terceiros) bastante competente, até cativante.

A narrativa de Espíritos das Luzes assenta em vários mistérios que se vão desenrolando ao longo do livro. Infelizmente, a sua resolução é atravancada pela necessidade da mensagem que o autor quer fazer passar. Da mesma forma, a necessidade da mensagem faz com que algumas das personagens que se revelam instrumentais perto da conclusão da história não terem adquirido até aí mais do que um esboço grosseiro, voltando apoteoticamente à boca de cena perto do final, não evitando uma aura de deus ex machina.
Por outro lado, é de registar o excelente trabalho de construção das personagens principais, Bocage e Beckford.

É entendível a paixão que move o autor perante esta época, os seus lugares e personagens. Assim se percebe a concretização deste projecto da forma que o foi. Mesmo assim, trata-se de uma obra rara, experimental, um possível indicador para outros voos do autor. Tomara todas as obras da literatura fantástica nacional falharem com o grau de ambição e de risco que o presente romance assumiu! Fica a curiosidade do que Octávio dos Santos nos poderá apresentar de seguida, provavelmente num registo não tão espartilhado pelas auto-impostas limitações referidas acima.

terça-feira, abril 27, 2010

A Questão das Designações

Escreve aqui o Luís Filipe Silva, numa das caixas de comentários, apontando a pouca visibilidade dos mesmos, o que me faz publicar esta questão neste post:

«A questão dos sub-géneros é pertinente e retirarei o livro do Octávio da equação. A minha pergunta, abreviada, é a seguinte: grande parte das classificações que ocorrem na FC surgem in media res. Ainda a coisa está a acontecer e já está a ser etiquetada, empacotada e vendida à parte. Aconteceu assim para o ciberpunk (Bethke?), para o Slipstream (Sterling?), para o Steampunk (Blaylock). Ou seja, ainda os autores não perceberam bem o que querem fazer com o objecto literário e já um tipo qualquer lhes diz o que fica dentro e o que fica de fora (João, eu sei que podemos discutir sobre isto ad eterno :))

Para todos os efeitos, o steampunk tem uma vertente bastante forte de análise dos efeitos da tecnologia no tecido social de uma época. Mas ainda assim não é distinto de história alternativa, é só um tom específico que alguém decidiu, por ser característico, destacar e chamar por outro nome. E isso não está mal. Mas depois surge a descoberta da pólvora na Idade Média, e temos de encontrar outro nome. Pergunto-me se haverá realmente necessidade disto ou se não estaremos a andar a respeitar demasiado designações apressadas dos outros quando temos igual legitimidade de inventar e reinventar as nossas.»

Vou colocar aqui também o meu comentário, esperando que a visibilidade acrescida favoreça o debate sobre este assunto.

domingo, abril 25, 2010

Um longo caminho...


Relata Roberto Mendes o estrondoso sucesso que constituiu a acção de divulgação que ele e o autor João Barreiros empreenderam na Feira do Livro de Sousel.

Iniciativas destas, descentralizadoras, podem revelar-se essenciais para a literatura fantástica nacional; dando um devido alento aos autores, e abrindo potenciais novos públicos ao género. Sem dúvida haverá actualmente uma grande curiosidade, que só beneficiará com o debate ao vivo destes temas. Não haverá porventura outra maneira de, mesmo nesta era em que se esperaria que o ubíquo acesso à net evitasse certas incorrecções, deixar de ver a literatura fantástica ser divulgadas com frases como a seguinte, retirada daqui (em que não há maneiras para contar todas as formas como ela pode estar errada):

"A propósito deste fenómeno [da literatura fantástica] que teve origem nos países nórdicos, mas que tem vindo a expandir-se em Portugal, as professoras deram ainda a conhecer alguns dos autores portugueses que se dedicaram e dedicam à escrita deste género literário, como é o caso de Júlio Verne e Filipe Faria."

*suspiro*

sábado, abril 24, 2010

Enciclopédia da Estória Universal - Resenha


Há livros que escapam à nossa atenção. Este Enciclopédia da Estória Universal, do Afonso Cruz, teria sido provavelmente um deles, não se tivesse dado o caso do Luís Rodrigues o ter apontado, para a versão online da Locus, como o único livro do fantástico nacional de nota em 2009.

Polémica que essa decisão tenha sido, e não concordando estritamente com ela (como pode ser depreendido de outros livros saídos em 2009 que tenho aqui resenhado), teve o condão de alertar alguns de nós para a existência do livro. Para mais que, quando o fui adquirir, percebi parte das razões da sua relativa obscuridade: devido ao seu nome, foi incluído nas secções de livros de História, ao invés das de Literatura Portuguesa. E se acham o caso com piada, pensem na diferente visibilidade dessas secções, e na cena ridícula de ter uma funcionária da livraria, perante o meu espanto na escolha da colocação, a admoestar-me enfaticamente de que não se tratava de um livro de Literatura!

Para além de escritor, Afonso Cruz é ilustrador, músico, realizador de filmes de animação, e, segundo o próprio, viajante. Aliás, a fabulosa ilustração da capa é da sua autoria, num volume que se destaca pelo aprumo visual.
Respeitando uma estrutura enciclopédica, o leitor vai assistindo neste Enciclopédia da Estória Universal a um desfilar de pequenas histórias (estórias) que se vão progressivamente cruzando e emaranhando, numa sucessão de obras referenciadoras e referenciadas. A lista de autores cujas citações se vão cruzando vai também aumentando, entre nomes puramente inventados e figuras tutelares deste tipo de fantástico, mesmo que reais ganhando aqui uma aura de divindades de facto, como por exemplo Jorge Luís Borges.

A burla e a ficção são assumidas, mas em poucas páginas já estamos tão envolvidos nelas que se nos parecem tão válidas como a (pretensa?) Realidade. Respira-se, afinal, nesta obra, um sopro verdadeiramente universal, da filosofia ocidental à reflexão oriental.
E, no final, ao se fechar o livro, pequeno do tamanho da mão aberta, sopesamos algo bem mais considerável que o que a nossa vista regista: o peso de uma sabedoria universal, de um micro-cosmos encerrado nesta maravilha apócrifa que a Quetzal terá sem dúvida conseguido surripiar ao Índice de Livros Proibidos. A não perder.

sexta-feira, abril 23, 2010

O Alambique (ou A Minha Reacção a Uma Reacção ao Post Anterior)


Blogs sem caixa de comentários disponível soam-me sempre a Muro das Lamentações. Até se pode orar lá, mas não se está à espera de ouvir grande resposta!
Por outro lado, quem o faz talvez confie que, se o caso for suficientemente importante, o Altíssimo logo tratará de arranjar uma forma de dar um sinal. E mesmo que as orações nem sequer sejam dirigidas ao Céu (mesmo com a disponibilidade das actuais novidades tecnológicas, as mesmas que nos pareciam tecnofantásticas há poucas eras), talvez também se confie nalgum vento que as carregue nessa direcção e as faça poisar no ouvido do querubim certo.

Vem esta poética introdução a propósito do artigo gentil e acutilante que o escritor Luís Filipe Silva publicou no seu blog, como desabafo, sobre a minha recente indicação de livros de FC portugueses que mereciam ser publicados em inglês, reportada aqui no post anterior.
No blog do Luís vejo-me impossibilitado de responder por não haver espaço para resposta, assim como aqui não encontro comentários do Luís na minha própria caixa de comentários (como ocorreu nas questões colocadas pelo também autor Octávio dos Santos, ao qual já respondi por esse meio). Portanto, como se calhar o assunto até merece, pormenorizo um pouco mais as razões da minha escolha, não porque a isso seja obrigado, mas porque poderão contribuir para um melhor entendimento dos critérios que escolhi aplicar, e porque talvez ajude a iniciar um debate mais vasto (espero que debate, e não apenas a «reflexão» sugerida pelo Luís...).

Quando aceitei participar na recolha que o Jonathan Cowie estava a fazer, sabendo que eram vários os contribuidores mas desconhecendo que mais nenhum era de Portugal (aliás, as minhas sugestões só deveriam ser aceites após secundadas por outro membro do fandom nacional...), o projecto chamava-se "major SF novels overlooked by Britain". Nessa altura, através de uma troca de emails com o organizador em que tentei perceber exactamente qual a intenção da iniciativa, julguei aperceber-me de várias indicações ao encontro das quais tentei ir. Nomeadamente:

- As indicações deviam dizer especificamente respeito a romances, excluindo colectâneas ou antologias.
- Os elementos de FC deviam constituir o motor base da história, não considerando histórias que "deslizassem" para a fantasia.
- Independentemente da minha sensibilidade de qualidade ou não, de originalidade ou não, o critério que eu deveria privilegiar deveria ser a capacidade de cada livro de ser atractivo, actualmente, como proposta para um editor britânico/norte-americano interessado em arriscar publicar um autor português; com as vicissitudes conhecidas de mercado.

Daqui surgiram as minhas escolhas, não pretendendo responder a um título que surgiu posteriormente à minha contribuição, o tal dos "SF classics", mas apresentando uma shortlist de obras a serem apresentadas a editores anglo-saxónicos, para um lobbying efectivo. O que é bem diferente de pretender traçar a história da FC em Portugal, o que claramente não me foi pedido, nem apregoado no texto final (mesmo que a assumpção de que todas as nomeações atingiram por inerência o estatuto de "clássicos" tenha aparentemente lançado alguma confusão nalguns leitores).
Aliás, foi intencional a escolha de obras mais recentes (dos últimos 10 anos) que, quando o processo estivesse completo e as editoras nacionais fossem contactadas, como originalmente planeado, não provocassem respostas anacrónicas para o exterior, aí sim dando uma imagem de falta de consistência da aposta.

Da mesma forma, seguindo estes critérios, ficava, para mim se não para outros, afastada a opção de indicar obras «cheiinhas de falhas, mas nossas», pela simples razão de espicaçar a memória. Mesmo que algumas das obras indicadas pelo Luís, e outras (da mesma altura) não mencionadas por ele, sejam das minhas preferidas, tenho consciência das suas limitações. Principalmente quando a tarefa é apregoar o nosso peixe como o mais fresco e de guelra avermelhada!

Junto-me então à sugestão do Luís, de reflexão; adicionando votos de discussão, na caixa de comentários já aqui em baixo.

quinta-feira, abril 22, 2010

Como os outros (europeus) nos vêem...


A European Science Fiction Society possui a figura das "Euroconferences", título a atribuir a conferências sobre o género que se revistam de particular interesse não só nacional mas sim europeu. Recentemente, essa distinção foi atribuída à Odyssey 2010, convenção britânica realizada no princípio do mês de Abril.
Essa componente europeia traduziu-se em vários painéis de discussão, focados em autores e livros europeus, principalmente não-anglófonos, que estarão a passar despercebidos do público em geral, e do enorme mercado anglo-saxónico em particular. Um desses painéis, intitulado Best Unread (in English) European Science Fiction Books, foi organizado pelo cientista inglês Jonathan Cowie, partindo de um trabalho anterior de recolha de informações por toda a Europa.

O painel foi constituído pelo próprio Jonathan Cowie e por Ian Watson (UK), Hannu Rajaniemi (Finlândia), Jo Fletcher (UK), Krill Pleshkov (Rússia) e Christian Sauve (França). O grupo de contribuidores para o artigo original que serviu de suporte ao painel foi bastante mais vasto, tendo-me sido pedido há alguns meses atrás que fizesse também parte dele.

O crivo de escolha das obras a indicar foi bastante simples. Teriam de ser obras em forma de romance, ou que funcionassem como um todo, claramente com elementos de FC. Teriam também de ser obras com considerável recepção da crítica e, na medida possível do mercado nacional, terem sido um sucesso de vendas, passível de interessar a editores anglófonos.
FC portuguesa best-seller, essa categoria mais rara que o pássaro dodó! No entanto, dois livros revelaram-se perfeitamente capazes de preencher estas limitações:

A Verdadeira Invasão dos Marcianos, de João Barreiros.
Lisboa Triunfante, de David Soares.

E foi com agradável surpresa que li que o escritor Ian Watson compartilhou da minha escolha ao apontar especificamente A Verdadeira Invasão dos Marcianos como uma das suas recomendações, provavelmente por via da sua publicação espanhola (o que também acabou por explicar a inclusão de algumas incorrecções no meu texto original, já depois da sua revisão). Seja como for, podem aceder ao texto completo, mais alguns comentários sobre o painel, aqui. E fica o desejo de que, numa próxima edição da iniciativa, hajam muitas mais obras a incluir.


Nota: Os que seguem o meio internacional da FC&F reconhecerão este título como parafraseado de uma série de notas do David Langford, na Ansible, intitulada genericamente "As Others See Us"; dedicada a retratar como o género é visto por pessoas fora dele, geralmente através de afirmações de hiperbólica ignorância. De leitura aconselhada, garantia de umas boas gargalhadas.

domingo, abril 18, 2010

Uma Espécie de Sentido - Resenha

O avistamento de ficção científica com vestes de "profecia humorística" é algo que me provoca automaticamente calafrios. Principalmente quando de autoria lusa. No entanto, é com deleite que posso afirmar que este Uma Espécie de Sentido, de João Pedro Duarte, conseguiu prender-me durante as suas 100 páginas, lidas de um fôlego, rir a bom rir, e pensar a bom pensar.

Para além do brilhante trocadilho no título, a citação em forma de dedicatória, do humorista Raul Solnado, revela de início o principal fio condutor da narrativa, «Façam o favor de serem felizes!», mesmo que algumas das personagens demorem a percebê-lo.
Esta não é uma história sobre o futuro de Portugal como país. Aliás, nesta história, Portugal não existe; submergido na catástrofe natural que fez desaparecer muitos dos locais que hoje conhecemos. Mas nesta história perpassa muito do que significa sermos portugueses, e, mais à frente, até algo da nossa relação africana recente, tantas vezes hoje relegada ao esquecimento.

Estamos em 2110, no que resta de Paris, França, numa Europa sob forte poder matriarca. Os homens tornaram-se impossíveis de confiar, assolados por inúmeras doenças físicas e mentais, e a infertilidade assentou arraiais. Há anos que não nasce uma única criança na Europa, e a alteração da balança de poder trouxe consigo novas inseguranças na batalha dos sexos. É esse o caso dos protagonistas; Miriam, médica, e David, faxineiro, amam-se num mundo que já não reconhece tal sentimento, oprimido pelo egocentrismo militante e confundido com a demência reinante.

A história é escrita num calão acutilante, sempre com o humor a aflorar em cada passagem; uma forma em que João Pedro Duarte se mostra bem à vontade. Igualmente, os diálogos são inseridos como se de um guião para teatro ou cinema se tratasse.
Em breve os dilemas do casal desencontrado são postos em perspectiva pelo assalto de um pedófilo (ex-apresentador de televisão, provavelmente a lembrar alguém muito específico!), intento em raptar o bebé de um casal fértil entretanto encontrado em África - afinal, o que poderá haver de mais penoso para um pedófilo que a extinção das crianças?!

É apenas a partir deste ponto que a história perde um pouco da sua bem-disposta “verosimilhança”. Principalmente com David em Moçambique, afinal o problema de fertilidade que o autor refere anteriormente ameaçar a humanidade só faz sentido no contexto europeu. Ou, por outro lado, talvez essa inconsistência nasça do facto do tema que sempre interessou mais ao autor abordar ter sido o dos afectos, utilizando a infertilidade como um mecanismo extremo.

Mas no final, com uma apropriada dimensão épica e emocional, o preço exigido a todos talvez seja o suficiente para revelar o caminho para uma, ou várias, formas de felicidade.
No balanço total, uma agradável surpresa (a lembrar o excelente O Século Primeiro depois de Beatriz, de Amin Maalouf), um livro bastante empolgante de ler, e um autor a manter debaixo de olho.

A FC enquanto mercado


Li atentamente, ontem, o post do João Seixas intitulado "Ficção Científica: Os porquês e os porque nãos". Na altura, não consegui impedir que vários pontos de discórdia pulassem logo à liça mental. Mais ainda, uns momentos depois, ainda com o post na cabeça, rodeado por uma enchente na FNAC Almada.
Hoje, quando me sentei para responder, dei-me conta que o Nuno Fonseca já o tinha feito, muito na linha do que são as minhas conclusões. Portanto, aconselho vivamente a leitura do seu post.

sábado, abril 17, 2010

There Can Be Only One?!


O título para este post foi difícil de encontrar. A razão principal para essa dificuldade foi a minha intenção de abordar vários temas. Assim, reducionista que possa ser, a opção escolhida acabou porventura por ser a mais polémica, a mais visceral. No entanto, a intenção é não ficarmos por essa faceta, mas sim abordar alguns pontos que me têm andado a moer há algum tempo, e que acabaram por coalescer ao ler o recente anúncio do adiamento do Jornal Conto Fantástico. Espero que olhem para além do título (mas, já agora, também para ele!).

Para facilitar a clareza da argumentação, irei reproduzir aqui alguns excertos do referido comunicado, da autoria do Flávio Gonçalves. Quem quiser fugir aos riscos de descontextualização, pode consultar o comunicado na íntegra, aqui ou aqui.

É imprescindível começar por referir que esta iniciativa, da editora Antagonista, fruto de uma colaboração entre o Flávio e o Roberto Mendes, responsável pela revista Dagon, é de louvar. Como inicialmente anunciado, trata-se-à de um jornal mensal, focado no conto fantástico, incluindo na sua constituição contos, entrevistas e artigos. Tal publicação, num campo ávido de conteúdo como é o da literatura fantástica nacional, não deixará certamente de ter um efeito positivo.

A este projecto surgiu entretanto associado um site oficial. Mais do que a mera publicidade ao jornal impresso, este site, reencarnação de um anterior portal que tinha entrado em auto-gestão, parece pretender assumir-se, ele próprio, como um exibidor de material original. Desta forma, assim como foram abertas submissões de contos para o jornal, são pedidos contos, noveletas, novelas, artigos de opinião, notícias e entrevistas, para o site.
Arvorando-me a algum conhecimento ganho nos últimos anos no meio do fantástico português, admito que me assusta um pouco esta dispersão. Não me interpretem mal, sou a favor da pluralidade de projectos. É algo de cuja falta padecemos. Aparentemente temos o fado de ver projectos nascer e morrer continuamente, mas raras vezes em simultâneo. Mas olhando para o presente momento, julgo constatar, num meio, assumamos, pouco prolifico, em qualidade e quantidade, um excesso de solicitações para projectos que dificilmente terão características editoriais diferentes (pela subjectividade de estarem envolvidas as mesmas pessoas). Especialmente no caso da Dagon, Volluspa, Jornal Conto Fantástico, Colecção Mir e Site Conto Fantástico; com outras novidades em fanzines e antologias prometidas para breve.

Claro que admito que estas fraquezas possam ser transformadas em forças. Guardemos esse ponto para mais à frente. Resolvamos primeiro esta questão da pluralidade, até porque é a que tem a ver com o título que atribuí ao post.

Escreve o Flávio no seu comunicado: «Será um projecto inovador dado que colmatará a actual ausência de órgãos nos quais os novos autores portugueses possam ser publicados e, consequentemente, criticados e escrutinados.».
Talvez por excesso de entusiasmo, o Flávio esqueceu-se das várias antologias que têm sido publicadas, assim como das várias que estão presentemente a aceitar submissões. De igual forma, esqueceu-se daquela que é presentemente a revista de literatura fantástica de maior duração, a BANG!. Provavelmente uma troca de galhardetes com o crítico João Seixas, que tinha por seu lado, também lamentavelmente, referido a BANG! como «a única revista portuguesa dedicada ao Fantástico».
Enquadrando estes quadros rocambolescos na actual "moda" de ignorar em posteriores publicações o caminho editorial percorrido por determinadas peças, nomeadamente contos, fica-nos um panorama de projectos "únicos" e "inovadores", cada vez mais autistas para o carácter "único" e "inovador" dos restantes!

Mas outra consideração, potencialmente mais produtiva, me surge da citação inicial. Especificamente sobre o benefício que advém para o autor da sua publicação. Diz de seguida o Flávio, «Julgamos que só assim poderão não só dar-se a conhecer como também poderão, com base nas críticas que receberem, melhorar o seu desempenho.».
Não concordo com o Flávio de que essa evolução advenha dos comentários dos leitores. Primeiro por conhecê-los (como escritor ou editor) escassos, depois por receá-los pouco técnicos e, muitas das vezes, cacofónicos na sua crítica escarninha ou apoio deslumbrado. É provável que a reacção do público possa fornecer uma medida do que ressoou com sucesso e do que se perdeu na transmissão da intenção com que a peça foi originalmente escrita. Mas pouco mais que isso.

Daí a suprema necessidade de editores. Mas daqueles mais interventivos, que opinam, que comentam tanto a qualidade básica do texto como a sua qualidade literária, que encaminham o autor com sugestões, que se atrevem a rejeitar. Oficinas de escrita ou grupos de escritores seriam outra opção de excelência para a melhoria dos textos, mas não ocorrem, resta saber se por falta de coordenação editorial ou por ausência de interesse autoral.
De qualquer forma, ao leitor devia ser poupado o test-drive, principalmente quando é cliente-pagador. Corre-se o risco dele se recusar a dar segunda volta ao circuito!

Prossegue o Flávio, afirmando que «Podíamos ter optado por um formato menos profissional, mais fanzine uma vez que normalmente é aí que se costumam estrear os novos talentos, mas uma vez que no mercado português não abundam quaisquer publicações do género e pressupondo que uma distribuição em várias livrarias e revistarias constitui um incentivo extra para os autores (uma zine fotocopia-se e oferece-se aos familiares, amigos e colegas, o jornal está legalmente registado e estará à venda ao público)[...]».
Apesar de entender o que supostamente quer dizer ao referir «um formato menos profissional», penso que o termo estará mal utilizado, e que se presta a uma confusão recorrente (causa, aliás, de debate aceso recente entre um editor e um tradutor da nossa praça): O grau de profissionalismo terá mais a ver com o aprumo no conteúdo do que com a qualidade do papel em que se escolhe imprimir o volume (e faço este comentário ainda sem ter visto a impressão do jornal, mas, pelo comunicado, julgando-a a melhor). Além disso, um fanzine pode perfeitamente estar à venda ao público, seja em lojas ou pelo correio.

Isso leva-nos à questão da distribuição. Pressupondo que a aceitação do jornal será menor que a da colecção Mir junto de livrarias, e que a tiragem do jornal não permitirá a cobertura da rede de "revistarias", sobrará certamente a loja virtual da Antagonista e algumas lojas de especialidade (indicando a editora neste momento, em termos gerais, cinco). Pessimismo indesejável, mas interrogo-me se não estará perto da verdade; principalmente quando várias pequenas editoras lançam apelos públicos à ajuda dos leitores, perante a incapacidade de penetração nas livrarias.

Efectivamente há muito a fazer no que diz respeito ao desenvolvimento da escrita de características fantásticas. E volto a pegar no ponto que tinha ficado pendente, nomeadamente de das fraquezas se poderem criar forças.
Algumas das publicações acima mencionadas poderão ser direccionadas para criar uma arena de treino para os autores, tentando atingir as outras com padrões de exigência superior. Não será preciso explicar o insidioso desta afirmação; a discrepância de critérios de qualidade seria certamente razão automática de descrédito perante muitos leitores.

Não se notando diferenças profundas na linha editorial entre várias publicações, perante a ainda insípida produção nacional, parece-me perigoso a dispersão de meios; receios talvez provados pelo atraso anunciado do Jornal Conto Fantástico, e da falta de anúncio da data de lançamento da Dagon nº2. Já bastarão os atrasos impostos pelo ritmo de vida profissional de quem, quase sempre, não faz destas publicações a sua vida profissional.

sexta-feira, abril 16, 2010

Se Acordar Antes de Morrer - Lançamento


Polémicas à parte, o livro está aí, e tornar-se-à com toda a certeza na nova obra de referência de um autor com a importância literária de João Barreiros.

Se acordar antes de morrer será lançado, com apresentação de Nuno Fonseca e do próprio João Barreiros, no dia 22 de Abril, às 18:30, na livraria Barata, em Lisboa.

quinta-feira, abril 15, 2010

E agora para algo completamente positivo!

Enquanto o céu anda carregado com promessas de tempestade, e a terra anda lamacenta com os delírios de anónimos embuçados e proselitistas encartados, existem algumas pessoas que conseguem encontrar o seu espaço para promover da melhor maneira o fantástico. É o caso da Sofia Teixeira, no seu blog Morrighan.



Num admirável trabalho, focado nos autores nacionais mas abarcando de um modo geral todas as obras que são publicadas em português, a Sofia promove livros, entrevista autores e fornece informações relacionadas com lançamentos e eventos. De especial nota é a sua coluna de resenha de livros, onde desenvolve opiniões expressivas e bem fundamentadas.

Sem dúvida, este Morrighan (nome aparentemente derivado do irlandês arcaico para "Rainha Fantasma") tornou-se rapidamente num local de passagem obrigatória para os adeptos do fantástico nacional.

A Alva Arte de Postar


Cada vez mais aspectos da nossa sociedade são alvo de tentativas de sanitização. Seja pela imposição do politicamente correcto, do bem-parecer, ou outra razão qualquer, a picardia de outrora, a oratória inflamada mas direccionada por um apurado sentido de crítica, caíram em maus lençóis; acabando por, qual tribo índia acantonada numa reserva federal, subsistir maioritariamente por sua própria conta e risco.

É ponto assente que o (bom) uso da ironia é sinal de pessoa inteligente, o que, por si só não dá indicações do carácter do indivíduo. Assim, enquanto alguns se deleitam a saltar para a arena, rodeando destemidamente o pano vermelho, desafiando outros a um combate de argumentos bem perto dos primórdios do boxe (onde o saber encaixar-se os golpes era tão crítico como a ofensiva), outros preferem o veneno destilado a coberto da sombra.
Quanto a esses últimos, uma única constatação: quem assim se acomete, é porque prefere dar de si outra imagem pública, a qual se importa de manter. Alguém só se esconde na sombra quando valoriza a máscara que mantém perante outros. Esta estratégia cedo ou tarde falha, até um ditado popular o vaticina, e geralmente a pessoa em causa vai saltitando de grupo em grupo, inevitavelmente ganhando fama idêntica em todos eles.

Depois existe ainda um grupo, o dos elefantes pitosga em loja de cristal. Aqueles que, quando se sentem acossados, interpelados, contrariados, questionados, ou quando sentem saudades de doutrinar os concidadãos, se lançam numa espiral de insultos e vitupérios, diatribes de imbecilidades.

Entre estes dois últimos grupos nem sei bem qual prefiro. Se a assumpção das acções, por mais grunha que possa ser a forma, é de louvar, é um beco-sem-saída. Com estas pessoas não se pode argumentar, não se pode racionalizar... por vezes nem se pode fugir a tempo dos perdigotos! Com os outros, os da sombra, do anonimato, acontece o inverso. Se a sua embustice lhes facilita o insulto, a nós, se exercermos a premissa de lhes responder, aumenta-nos a margem de manobra para "descer o pau", ou para simplesmente os ignorar. Além disso, estilos e motivações reconhecem-se ao fim de algum tempo, e é sempre bom ter uma noção do que algumas pessoas são capazes.

Vem todo este discurso a propósito da (mais recente, yet again) vaga de agitação no fandom nacional do fantástico. Caída a discussão na praça pública, já um embrulho de discussões, demonstrações de egos insuflados, e declarações de fatwas várias, ouvem-se vários apelos para um controlo e identificação dos comentários nos vários sites do género.
Um facto que parece escapar a quem pede esta medida é que, neste mundo virtual, qualquer um de nós pode criar uma "identidade" alternativa. Ou seja, um comentário "registado" é um endereço de email, numa tecnologia que permite um número quase infinito deles, não um nº de BI.

Por mim, prefiro manter aqui os comentários abertos. E comentá-los, se assim o achar indicado; aqui ou em qualquer outro blog de "sinal aberto". Mesmo que isso faça de mim, aos olhos de alguns zelosos de serviço, um «imbecil».

A net tem destas coisas. Vivam com elas!

quarta-feira, abril 14, 2010

Let's get ready to rumble!

Próximo Fórum Fantástico STOP Novembro 2010 STOP Biblioteca de Telheiras - Lisboa STOP Preparem-se... NON STOP!

segunda-feira, abril 12, 2010

Novidades sobre o primeiro "Jornal Conto Fantástico"

Como foi anunciado, esta iniciativa, em forma de jornal, será lançada em Abril, através de uma parceria entre Roberto Mendes, do blog Correio Fantástico, e a editora Antagonista.

Assim, o primeiro número do Jornal Conto Fantástico contará com contos de Carla Ribeiro, Regina Catarino e João Rogaciano; mas também com uma entrevista a João Barreiros e uma coluna, a repetir mensalmente, de Álvaro Holstein.

Mais novidades, prometidas para breve, podem ser acompanhadas no blog do jornal.

quinta-feira, abril 01, 2010

Livro de FC português distinguido pelo Ministério da Educação


Se acordar antes de morrer, de João Barreiros, publicado na colecção "1001 Mundos" da editora Gailivro, está presentemente a caminho dos escaparates das livrarias e já é um sucesso!

Soube-se ontem que foi escolhido pelo Ministério da Educação para um programa-piloto junto de algumas escolas para incentivar a criatividade e capacidade de narrativa e síntese dos jovens portugueses. Assim, a editora lançou-se já na produção de uma segunda tiragem, inteiramente dedicada a ser distribuída, a custas do Ministério, entre alunos do 7º ano de escolaridade. A escolha foi feita, segundo Patrício Teixeira, do ME, dado «o nível de exigência que os textos de João Barreiros representam para o público leitor, mas ao mesmo tempo a capacidade de estímulo à criatividade.».

Esta colectânea de contos de João Barreiros, reconhecido por muitos como o melhor escritor de FC portuguesa, foi enriquecida com uma capa da autoria do artista Andreas Rocha, que muito aumenta o impacto deste tomo de mais de 500 páginas, representando um Pai Natal cibernético perante uma horda de zombies, o que também terá contribuído para a escolha do ME, a par de evidentes manobras políticas por parte da Gailivro, agora que pertence ao gigante grupo Leya, para além do seu longo historial como editora de produtos escolares. Parabéns também ao esforço do editor Pedro Reisinho, que muito tem feito pela divulgação da FC nacional, nomeadamente apostando em autores como Octávio dos Santos, Telmo Marçal e João Barreiros.
São portanto 15 contos de João Barreiros, entre eles um inédito ("Um Homem e o seu Gato"), que terão agora oportunidade de disseminar o gosto pela FC nas camadas mais jovens.