sábado, fevereiro 13, 2010

Brinca Comigo - Resenha


A notícia de um tomo que junte autores com as capacidades já demonstradas de David Soares, João Barreiros, João Ventura e Luís Filipe Silva é por si só um acontecimento a festejar. Ainda mais quando surge numa altura em que a literatura fantástica portuguesa enferma por demasiado exposta à celeridade exagerada com que os novos autores são lançados à arena da publicação, sublinhando ainda mais a necessidade de maior prolificidade dos autores mais tarimbados.

No entanto, a recente antologia de contos Brinca Comigo, e outras estórias fantásticas com brinquedos (Escritório Editora, 2009), editada por Miguel Neto, revelou-se lamentavelmente uma oportunidade perdida; quer na óptica do leitor recém-chegado ao género ou do leitor mais habituado ao fantástico.

Se o leitor neófito fica com uma ideia bastante subvalorizada dos vários autores em presença, qualquer deles representado por um conto muitos pontos abaixo do melhor que já produziu, o leitor veterano não evita a desilusão perante uma iniciativa à partida com todas as possibilidades de constituir um veículo promotor do que melhor se faz em Portugal em termos de literatura fantástica.

"Brinca Comigo", de João Barreiros, é a história de abertura, dando também o nome à antologia. Numa Lisboa devastada por um caos tecnológico, uma Horda de brinquedos, pendendo constantemente entre a desagregação e a plena consciência comunitária, não pára perante nada até conseguir concretizar a razão da sua existência. A utilização de bonecos mundialmente conhecidos, e queridos; sejam Noddys, Barbies e Kens, ActionMan, etc, cria uma familiaridade cândida no leitor, o que, conduzido pela mão experiente de João Barreiros, se transforma numa sentida preocupação com o destino dos protagonistas.
Publicado previamente no nº3 do ezine Nova (o que não é referido nesta edição), este conto relaciona-se, em tom sarcástico e ambiente decrépito, com as estórias distópicas que povoam a sua fabulosa colectânea O Caçador de Brinquedos (Editorial Caminho, 1994), entre outras. Assim, para quem descobrir a escrita de João Barreiros com a presente antologia, será o abrir de todo um mundo por explorar. Para os outros, que já conhecem os superiores Caçador de Brinquedos ou A Bondade dos Estranhos: Projecto Candyman (Chimpanzé Intelectual, 2008), este tratar-se-á de um conto competente, com um final típico do autor, embora porventura precocemente previsível; mas não descobrirão aqui nada de novo.

Tendo publicado a sua última colectânea de contos em 2008, apelidada Os Ossos do Arco-Íris (Saída de Emergência, 2008), passando a investir desde então, com crescente sucesso, na escrita de romances, David Soares tem, esporadicamente, contribuído com contos para diversos fins. Pena é que o conto incluído nesta antologia, "Um Erro do Sol", demonstre uma surpreendente confusão narrativa; fenómeno adicionalmente mais estranho num escritor com o carácter meticuloso de David Soares!
Um empresário de brinquedos dinamarquês julga encontrar, durante as férias familiares, uma nova atracção capaz de o arrancar à comparativa inferioridade perante os mais directos concorrentes. Tal descoberta fá-lo arrastar toda a família numa viagem até uma ilha remota, onde o espera um ambiente de horror. E é precisamente nesta fase da história que tudo parece perder-se: desde o investimento emocional na personagem do empresário, afinal um mero lead in, à consistência da história, fragmentada entre as diferentes secções.
Um exemplo de que nem sempre um conjunto de bons ingredientes asseguram um prato final divinal, apesar da mestria do chef.

Também de mestria se tem feito a carreira de João Ventura, um autor que merecia já ter uma colectânea dos seus contos no mercado livreiro. Principalmente no formato curto, num registo urbano, irónico, actual, João Ventura tem demonstrado um virtuosismo invejável. Talvez por isso, se note tanto o desajuste da primeira metade de "A Boneca", onde o autor se revela menos à vontade com uma narrativa em ambiente de fantasia épica.
Aqui, a boneca nunca adquire propriedades de brincadeira, como a contracapa da antologia se arvora ter como temática central, mas sim habilidades mágicas capazes de castigar os tiranos da terra. E mesmo quando a história adquire uma temporalidade actual, o conto é estorvado pela previsibilidade que é imposta pela revelação inicial de toda a lógica da história. A ajudar a essa falha, à boneca, real protagonista da história, acaba por ser imposto um papel meramente passivo, fruto da estruturação da narrativa. Assim, infrutífero é o anseio do leitor de que no final da história surja um derradeiro twist que revele uma surpresa na conclusão.

Por último, o conto de Luís Filipe Silva, "Não é o que ignoras o motivo da tua queda, mas o que pensas saber" (a vírgula é minha, já que o título na sua forma original me parece de infeliz escolha, por atreito a leitura errónea), utiliza bonecos cheios de poeira alienígena, lançada pelos invasores utara, como catalisador para a resolução da crise que é imposta ao planeta Terra.
A história de amadurecimento do protagonista principal durante a invasão proporciona um excelente esqueleto de suporte para o conto, que infelizmente não é tão bem aproveitado pela superficialidade e aspectos vagos da força invasora. Da mesma forma, as tecno-baboseiras debitadas como suposta explicação científica dos acontecimentos relatados só adicionam à sua falta de consistência. Realmente, é a dimensão humana do conto que acaba por constituir a sua única força.

Nota final de apreciação para a excelente capa da antologia (reproduzida acima), a partir de uma fotografia de Pedro Vilela.

De qualquer maneira, mesmo não sendo a apreciação global desta antologia muito positiva, o historial e a capacidade técnica destes quatro autores aconselham a compra, e a leitura, da obra; mesmo que seja improvável que a mesma seja memorável.

1 Comments:

At 2/20/2010 11:05 da tarde, Blogger Álvaro de Sousa Holstein said...

Existe uma tendência perniciosa e persistente em não referir que os fanzines e ezines e, por vezes, até revistas, foram, a maioria das vezes, o veículo que possibilitou a publicação.

Álvaro

 

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